O luto do começo ao fim
[ De Rui a Marino, para eles e seus companheiros ]
Não faz tanto tempo.
Em 2004, regressando de celebrações dos 60 anos do Dia-D na Normandia, cruzamos com três pilotos do “Senta a Pua” (voaram os P-47 na Itália durante a Segunda Guerra Mundial) na área de espera do aeroporto Charles de Gaulle em Paris - eram Rui, Meirinha e Goulart. O primeiro nos obrigou carinhosamente a acompanhar celebrações do Grupo já a partir de dezembro do mesmo ano, e ali começou uma bela amizade.
Frequentamos por anos o apartamento de Rui e Julinha em Copacabana, onde nos divertíamos jogando conversa fora. O aprendizado foi enorme, sobre a Guerra e sobre a vida. Era nosso contato inicial com as vidas de brasileiros que atravessaram o Atlântico para combater o nazifascismo em 1944/1945.
Ana e eu transformamos o casal em uma espécie de referência; eram a nossa enciclopédia do “carpe diem”. Nós a caminho dos 40/45 e eles para 90/95 anos de idade!
Seis meses antes de morrer, Rui deixou um recado em nosso telefone celular. Mandou brasa bem a seu estilo perguntando porque nós havíamos esquecido dos velhinhos, indagando retorno imediato, para compartilhar as amenidades da vida - foi prontamente atendido! De 2008 a 2013 nosso convívio pessoal diminuíra por conta das atribulações da vida, mas nos obrigamos a estar com eles algumas vezes, sendo que na última para um almoço inesquecível.
Rui Barbosa Moreira Lima partiu em 13.8.2013, deixando-nos em choque. Dois anos antes, José Marino, veterano da Força Expedicionária Brasileira e morador de Araraquara, lançava um pequeno livro de poesias.
Rui aviador e Marino infante conversaram por alguns minutos ao telefone durante a vernissage, por minha provocação, porque o segundo se lembrava de algumas investidas dos P-47 coordenados pelo primeiro em Montese e Monte Castelo.
A cronologia não se rompeu. De Rui (desde 2004) a Marino (a partir de 2010), continuamos com a curiosidade histórica, (re)introduzida por Hanks e Spielberg em “Resgate do Soldado Ryan” & “Band of Brothers”. O passamento de Rui foi amenizado pela convivência recente com Marino.
José Marino nasceu em 1920, em dia e mês ora dedicado internacionalmente a Mulher. Cresceu no meio agrícola. Viajou com a FEB para o norte da Itália no primeiro escalão, em julho de 1944 e deixou o combate à tirania de lado por apenas quatro dias, após ser ferido pelos nazistas na tomada de Montese (abril 1945).
Não o conhecíamos até metade de 2010, quando nos sentimos preparados a procurar os veteranos ‘pracinhas’ da região (moramos em Jaboticabal - SP) para um trabalho de resgate histórico, após voltarmos de homenagens (abril 2010) aos brasileiros na região onde combateram: Monte Castelo, Montese, Zocca, Abetaia, Pistoia, etc.
Buscamos o primeiro contato com Marino numa noite, provavelmente no segundo semestre de 2010, soando a campainha de sua casa, colorida por dezenas de orquídeas no jardim. Demorou para entender o que queríamos - estamos aqui para agradecer a um veterano - mas após alguns minutos, colocou-nos em sua sala, e a seguir na cozinha, abrindo logo o refrigerador, cortando agilmente queijo e salame, e servindo vinho tinto.
Dali por diante, a relação se estreitou e começamos a tirar Marino de casa com mais e mais frequência - desfiles, exposições, palestras, homenagens, jantares. De uma educação a toda prova, humilde até o último fio de cabelo (e ele tinha bastante), um verdadeiro lord inglês nascido em terras tupiniquins, sempre disposto.
O contato com o público parece ter feito muito bem ao veterano operador de morteiro de infantaria. Os desfiles começaram em agosto de 2011, no aniversário de Araraquara, quando já estávamos com o nosso Jeep 1942, seguindo para a Independência do Brasil, um mês depois em Jaboticabal. E assim, seguiram-se os anos, incluindo participações em Encontros Nacionais de Veteranos da FEB (inclusive no Rio de Janeiro, onde Marino só estivera na época da Guerra).
Foram inúmeros os ‘causos’ com Marino, com muitas curiosidades que valeriam, cada uma delas, crônicas em separado. A ‘jóia da coroa’ veio com a viagem surpresa para a Itália, em 2015 - agendamos passaporte sem ele saber, só foi para a Polícia Federal coletar digitais e clicar a foto, voltando quinze dias depois para segurar, em suas mãos, o documento de viagem, que obviamente o deixou intrigado.
Finalizamos a compra do bilhete aéreo e novamente o surpreendemos, voltando a sua casa para colocar a passagem no meio de seu passaporte e avisá-lo, com cinco meses de antecedência, de que ele embarcaria conosco em abril para Montese e Monte Castelo, onde combatera setenta anos antes. Maria do Carmo, filha de Marino, tão surpresa quanto o pai, quebrou os cofrinhos e nos acompanhou a todos para a bela festa promovida pelos italianos a seis ‘pracinhas’ que, nonagenários, voltavam ao país que só conheciam destruído, no final da guerra.
Logo se instala, para os que acompanharam a narrativa até aqui, o sentimento de injustiça no passamento desses homens e mulheres, porque é a História viva que se replica em si própria, minuto após minuto, dia após dia, por anos.
O tempo passou, a Itália celebrou nossos heróis, os brasileiros resgataram em parte (seja qual for a vertente política de cada um de nós) a beleza desse momento histórico, e aos poucos, como aconteceu com Rui, Lansilotte, Stéfani, Diogo, Gentilini, Meirinha, Correa, Mottinha, Zito, Moreira e tantos outros, eles foram dizendo ‘adeus’ de maneira muito singela, cultivando para os que estavam preparados, o sentimento de que se tratava, de fato, da nossa “The Greatest Generation”.
É nesse contexto que encaramos o “luto do começo ao fim”, porque o luto é a tristeza pela partida, e em seu fim, deve justificar e destacar a vida de quem se vai, não sua morte.
A notícia da viagem de José Marino para o “Bivaque Eterno” nos colheu com espanto em 31.12.2018, a despeito de seu estado de saúde fragilizado. Estávamos em viagem de férias, com pouco acesso a ‘internet’ e ao ingressar no Museu do Dia-D, em Porthsmouth (Inglaterra), a rede gratuita de Wi-Fi transformou o aparelho celular em uma britadeira de bolso que não parava de pulsar.
Sentados, começamos a ler as mensagens que não cessavam, algumas indagando sobre a veracidade das notícias e pêsames. Perdemos nosso chão, era uma etapa que se encerrava, e outra a que se agrega maior responsabilidade, esta como vetores dessa História imperdível de heróis. Não estivemos ao lado de Marino, corpo presente, durante o sepultamento - foi repetição do que aconteceu com Mottinha na mesma cidade, também ausentes. Mas nos sentimos acolhidos e representados por Maria do Carmo e Walney, além de todos nossos amigos que participaram das exéquias no primeiro dia de 2019.
Isso reforça a imagem de José Marino presente, vivo, sorridente, tomando sua taça de vinho tinto seco e orando todas as noites antes do repouso cotidiano.
É assim que deve ser. É assim que começa e é assim que vai terminar, com a esperança de dias melhores e a perpetuação da História dos ‘cobra-fumantes’. É por isto que fazemos o que fazemos, transformando “Belinha” (o Jeep 42) e a reencenação em anzóis de pesca a içar mais curiosos para o “lado iluminado da Força” … Expedicionária Brasileira.
Por Rui Barbosa Moreira Lima, no comecinho, e por José Marino, no finzinho. Por todos os que vieram antes e por todos aqueles que preencheram a lacuna, incluindo Max Wolff, Weber, Gentilini, Meirinha, Moreira e Zito. Pelos que vão continuar nos surpreendendo, como Ivan Alves, Toninho Inhan, Anselmo, Simão, Nestor. Por Junqueira, em São Lourenço MG, que nos atendeu ao celular ainda a pouco, do altos de seus 104 anos e nos tratou quase como netos, sem nunca ter nos visto (ou ouvido) antes. Pelos citados nominalmente, e pelos não citados - com eles não há exclusão - porque a humildade, entre os ‘pracinhas’, quase sempre é palavra de ordem.
As orquídeas queridas de Marino, floridas ao tempo do sepultamento, foram cuidadosamente cortadas e levadas para as cerimônias fúnebres. Não poderia haver, de fato, melhor companhia para o herói ferido pelos nazistas na tomada de Montese em 1945.
Procure um veterano da FEB, bata a sua porta, aperte sua mão e agradeça.
E não se fala mais em morte.
Jaboticabal, 08.1.2019.
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